14 julho, 2009


“Se eu for adiante às minhas visões fragmentárias, o mundo inteiro terá que se transformar para eu caber nele.”

“Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar, mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar.”

“Perdi durante horas e horas a minha montagem humana. Se tiver coragem, eu me deixarei continuar perdida.”

“As duas perdas que andam, sem mais a terceira que prende. E eu quero ser presa.”

“Não sei o que fazer da aterradora liberdade que pode me destruir. Mas enquanto eu estava presa, estava contente? Ou havia, e havia, aquela coisa sonsa e inquieta em minha feliz rotina de prisioneira? Ou havia, e havia, aquela coisa latejando, a que eu estava tão habituada que pensava que latejar era ser uma pessoa.”

“Sei que precisarei tomar cuidado para não usar sub-repticiamente uma nova terceira perna que em mim renasce fácil como capim, e a essa perna protetora chamar de ‘uma verdade’.”

“Uma forma contorna o caos, uma forma da construção à substância amorfa – a visão de uma carne infinita e a visão dos loucos, mas se eu cortar a carne em pedaços e distribuí-los pelos dias e pelas fomes – então ela não será mais a perdição e a loucura: será de novo a vida humanizada.”

“Antes, sempre que eu havia tentado, meus limites me davam uma sensação física de incômodo, em mim qualquer começo de pensamento esbarra logo com a testa. Cedo fui obrigada a reconhecer, sem lamentar, os esbarros de minha pouca inteligência, e eu desdizia o caminho. Sabia que estava fadada a pensar pouco, raciocinar me restringia dentro de minha pele. Como, pois inaugurar agora em mim o pensamento? E talvez só o pensamento me salvasse, tenho medo da paixão.”

“Esse esforço que farei agora por deixar subir à tona um sentido, qualquer que seja esse esforço seria facilitado se eu fingisse escrever para alguém.”

“Mas receio começar a compor para poder ser entendida pelo alguém imaginário, receio começar a ‘fazer’ um sentido, com a mesma mansa loucura que até ontem era o meu modo sadio de caber num sistema.”

“Toda compreensão súbita é finalmente a revelação de uma aguda incompreensão. Todo momento de achar é um perder-se a si próprio. Talvez me tenha acontecido uma compreensão tão total quanto uma ignorância, e dela eu venha a sair intocada e inocente como antes.”

“Eu sei. Sei que vi porque não dei ao que vi o meu sentido. Sei que vi – porque não entendo. Sei que vi – porque para nada serve o que vi. Escuta, vou ter que falar porque não sei o que fazer de ter vivido. Pior ainda: não quero o que vi. O que vi arrebenta a minha vida diária. Desculpa eu te dar isto, eu bem queria ter visto coisa melhor. Toma o que vi, livra-me de minha inútil visão, e de meu pecado inútil.”

“Estou tão assustada que só poderei aceitar que me perdi se imaginar que alguém me está dando a mão. Enquanto escrever e falar vou ter que fingir que alguém está segurando a minha mão.”

“Por enquanto preciso segurar esta tua mão – mesmo que não consiga inventar teu rosto e teus olhos e tua boca. Mas embora decepada, esta mão não me assusta. A invenção dela vem de tal idéia de amor como se a mão estivesse realmente ligada a um corpo que, se não vejo, é por incapacidade de amar mais.”

“Logo que puder dispensar tua mão quente, irei sozinha e com horror. O horror será minha responsabilidade até que se complete a metamorfose e que o horror se transforme em claridade. Não a claridade que nasce de um desejo de beleza e moralismo, como antes mesmo sem saber eu me propunha; mas a claridade natural do que existe, e é essa claridade natural que aterroriza. Embora eu saiba que o horror – o horror sou eu diante das coisas.”

“Por enquanto estou inventando a tua presença, como um dia também não saberei me arriscar a morrer sozinha, pôr o primeiro pé na primeira ausência de mim – também nessa hora última e tão primeira inventarei a tua presença desconhecida e contigo começarei a morrer até poder aprender sozinha a não existir, e então eu te libertarei.”

“Por enquanto eu te prendo, e tua vida desconhecida e quente está sendo a minha única íntima organização, eu que sem tua mão me sentiria agora solta no tamanho enorme que descobri.”

“Mas é que a verdade nunca me fez sentido. A verdade não me faz sentido! É por isso que eu a temia e a temo. Desamparada, eu te entrego tudo – para que faças disso uma coisa alegre. Por te falar eu te assustarei e te perderei? Mas se eu não falar, eu me perderei, e por me perder eu te perderia.”

“A verdade não faz sentido, a grandeza do mundo me encolhe.”

“Mas que amor é esse tão cego como o de uma célula-ovo? Foi isso? Aquele horror, isso era amor? Amor tão neutro que – não, não quero ainda me falar, falar agora seria precipitar um sentido como quem depressa se imobiliza na segurança paralisadora de uma terceira perna. Ou estarei apenas adiando o começar a falar? Por que não digo nada e apenas ganho tempo? Por medo. É preciso coragem para me aventurar numa tentativa de concretização do que sinto. É como se eu tivesse uma moeda e não soubesse em que país ela vale.”

“Por enquanto o primeiro prazer íntimo que estou tendo é o de constatar que perdi o medo do feio. E essa perda é de uma ta bondade. É uma doçura.”

“Estou adiando. Sei que tudo o que estou falando é só para adiar - adiar o momento em que terei que começar a dizer, sabendo que nada mais me resta a dizer. Estou adiando o meu silêncio. A vida toda adiei o silencio? Mas agora, por desprezo pela palavra, talvez enfim eu possa começar a falar.”

“Minha última e tranqüila ligação amorosa dissolvera-se amistosamente com um afago, eu ganhando de novo o gosto ligeiramente insípido e feliz da liberdade.”


[Clarice Lispector]

Um comentário:

Vanessa Pinho disse...

“Se eu for adiante às minhas visões fragmentárias, o mundo inteiro terá que se transformar para eu caber nele.”

rá! Pra variar, eu sempre encontro algo por aqui que é a "minha cara".